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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A política externa Argentina (PEA) durante os governos justicialistas (Menem, Duhalde e Kirchner) e as relações com o Brasil*

 

 


RESUMO

As políticas externas dos governos Menem (1989-1999), Duhalde (2002-2003) e Kirchner (2003-2007) apresentam algumas características que podem ser consideradas recorrentes na conduta externa do país: a luta constante entre duas visões de mundo ou entre duas formas de como inserir-se no mundo, quais sejam, a busca pela autonomia e a relação especial com a potência hegemônica. Embora ambos os governantes sejam oriundos dos quadros justicialistas (movimento originário do peronismo), as práticas e condutas de cada um diferenciaram-se entre si. A hipótese do presente trabalho é a de que o papel das ideias e das crenças teve grande influência na formulação e decisão da PEA durante esse período, o que provocou uma variação bastante significativa na sua conduta. Nesse caso, as ações em nome de uma tradição (justicialista) foram influenciadas mais pela visão de mundo de cada governante (ou do grupo de decisores) do que pelo conjunto programático da doutrina a qual ambos faziam parte. O relacionamento com o Brasil, objeto do presente estudo, navegou na corrente dessa dicotomia. As relações com os Estados Unidos e sua importância na região e a luta contra o suposto protagonismo brasileiro levaram a Argentina nesse período a mudar constantemente sua agenda externa em relação ao Brasil.

Palavras-Chave: Argentina, Política Externa, Menem, Duhalde, Kirchner, Ideias, Crenças


 

 

1 O SISTEMA DE CRENÇAS DOS GOVERNOS MENEM, DUHALDE E KIRCHNER

As políticas externas dos três governos justicialistas que se seguiram após a redemocratização do país apresentaram diferenças substanciais nas suas ações. Nesse sentido, cabe um questionamento sobre se o sistema de crenças da Terceira Posição não  seria um mosaico tão rico de ideias e crenças que poderia abrigar tanto as perspectivas autonomistas como as de alinhamento. Para responder a essa questão faz-se necessário uma rápida explanação sobre as origens do "modelo justicialista" e suas ideias constitutivas.

A experiência peronista dos anos 1940/50 y 1970, que passou a ser denominada Terceira Posição, serviu de base para a construção desse modelo sendo adotado pelos governos Menem, Duhalde e Kirchner a partir dos anos 1990. Com base nessa experiência alguns estudiosos se dedicaram a analisar a política externa argentina, tendo como principal contribuição teórica as análises de Juan Carlos Puig (1988) sobre a política internacional argentina em relação à potência dominante através do conceito autonomia heterodoxa. Para esse autor, apesar da forte assimetria existente no âmbito das relações internacionais, é possível um país por em prática políticas e estratégias mais ou menos autonomizantes:

[...], en el caso argentino, quedan enmarcadas dentro de dos escenarios-tipo bien diferenciados: el de la dependencia nacional y el de la autonomía heterodoxa. Mientras que en el primer caso, las elites nacionales aceptan las consecuencias de las relaciones asimétricas, pero tratan de sacar el mayor provecho posible de tales relaciones aun a riesgo de conflictos importantes debido a la "miopía" de la Potencia dominante, en el segundo reivindican aspectos cada vez más sifnificativos para su decisión propia. (PUIG, 1988, p. 20).

De acordo com Puig, a estratégia de autonomia heterodoxa na política externa argentina teve seus primeiros sinais quando Perón, ao perceber as mudanças no sistema internacional após a segunda guerra mundial soube reconhecer a ascensão dos Estados Unidos como nova superpotência. Este reconhecimento tinha uma explicação bastante pragmática: a obtenção de benefícios para o desenvolvimento do país:

Esta vez la Argentina optó por una ubicación estratégica novedosa. Por una parte era inevitable reconocer el ascenso de Estados Unidos; por otra, no se podía volver a cometer el error de renunciar al desarrollo autonómico. La consecuencia fue la adopción por primera vez en la historia de la política exterior argentina de la estrategia autonomista heterodoxa y parece evidente que deba acreditarse tal innovación a Juan Perón. (PUIG, 1988, p. 29).

O pragmatismo foi, portanto, uma característica da nova estratégia facilitada pela lógica do conflito bipolar e se transformou em um legado do justicialismo sendo uma das características de todas as suas gestões governamentais. (MIRANDA, 2003, p. 109). A relação que Perón manteve tanto com os Estados Unidos como com a União Soviética fez com que se revertesse o nível dos conflitos que o país tinha com ambas as potencias e através delas se buscou ampliar os espaços internacionais. (MIRANDA, 2003, p. 109). Como veremos mais adiante, o pragmatismo foi uma reivindicação dos três governos examinados aqui, porém com o propósito de alcançar objetivos opostos.

Outra característica da doutrina justicialista é o ideário continental1, preconizado por Perón em 1946 como sendo uma solução para articular a unidade econômica latino-americana. (CISNEROS A.; PIÑEIRO IÑÍGUEZ, C., 2002, p. 240). Este ideário propunha uma união com os países sul-americanos cujo objetivo era romper com a política tradicional de indiferença para com a América Latina praticada até então pelos Estados Unidos. De acordo com essa proposta, os conflitos geopolíticos deveriam ceder lugar à prática de solidariedade e cooperação com os países vizinhos. As ações integracionistas passaram então a ser sustentadas pelos governos justicialistas que se seguiram embora sob contextos e propósitos diferentes.

Como destaca Miranda (2003, p. 99), o modelo justicialista de política externa esteve presente nos governos de Juan Perón (1946-1955), nas quatro gestões entre 1973 y 1976, nos governos de Carlos Menem (1989-1999) e no governo provisório de Eduardo Duhalde (2002-2003). O governo de Kirchner (2003-2007), por sua vez, não somente seguiu o modelo como o aprofundou tratando de utilizar as duas estratégias discutidas aqui: o pragmatismo e a autonomia.

 

2 AS RELAÇÕES ARGENTINA-BRASIL DURANTE OS GOVERNOS JUSTICIALISTAS

Carlos Saul Menem (1989-1999)

A visão de mundo2 dos decisores da política externa do governo Menem estava alicerçada nas ideias liberais e nas experiências bem sucedidas da economia agroexportadora do início do século XX na Argentina. A escolha da política de estabilização econômica praticada durante a década de 1990 e a relação especial com os Estados Unidos como eixo da política externa revelam a existência de uma coincidência com as ideias e crenças dos líderes do começo do século em relação ao papel da Argentina no mundo e sua importância estratégica. Para seus idealizadores, as políticas (realistas) inspiradas no prestigio e no poder, praticadas até a gestão de Menem, não levaram em conta o bem estar dos cidadãos argentinos que sofriam cada vez mais com os problemas econômicos, especialmente a hiperinflação. Nesse sentido, eles propunham com urgência a estabilidade monetária e uma política externa que buscasse os objetivos econômicos do país. (ESCUDÉ, 1997, p. 1). Coincidência ou não, esta proposta se ajustaria com perfeição à fórmula ortodoxa proposta pelo Consenso de Washington, em 1989.

A defesa dos princípios liberais (e idealistas) fica evidente nos escritos de Carlos Escudé quando este faz referência ao realismo periférico, a doutrina que orientou a política externa menemista:

Está clara y explicitamente inspirado por premisas filosóficas liberal-democráticas, y es por lo tanto más "liberal" que la llamada teoría liberal de las relaciones internacionales, la cual, debido a su Estado-centrismo, pierde de vista el contrato social entre el Estado y sus ciudadanos. (ESCUDÉ, 1995, p. 227).

Outro aspecto importante dessa doutrina é a percepção da Argentina como um "Estado fraco", cuja única tarefa seria cuidar de seus cidadãos uma vez que os Estados fracos "no pueden competir por el poder político-militar en el sistema interestatal sin un costo extremo para su gente" (ESCUDÉ, 1995, p. 227). Portanto, não haveria possibilidade de um país como a Argentina influir na ordem internacional. Seu único recurso seria o de se aliar ao poder hegemônico da região. Os três pressupostos básicos que orientam o realismo periférico confirmam essa tese.

1. En una democracia liberal la principal función de la política exterior de um país en vias de desarollo debería ser servir a los ciudadanos, y esto se consigue principalmente facilitando el crecimiento económico;
2. Por ello, el desarrollo es la definición misma del interés "nacional", sobre todo en el caso de un país, como la Argentina, que no enfrenta amenazas externas creíbles por parte de actores estatales;
3. Los Estados Unidos constituyen la limitación externa individual más importante para el desarrollo de los países de la región latinoamericana, y es por consiguiente del mayor interés para um país como la Argentina tener buenas relaciones con esa potencia, siempre que ello no sea a expensas de nuestros intereses materiales. (ESCUDÉ, 2005, p. 112-113)

De acordo com Escudé (1992), este novo enfoque se caracterizou pela intenção de abandonar o perfil de confrontação com o poder hegemônico cometido pelos governos anteriores, sendo que a fórmula mais eficaz para retomar a credibilidade do país seria o apoio incondicional dos Estados Unidos. Era uma crítica dirigida, sobretudo, aos governos militares por seu "realismo ingênuo" e ao governo do radical Raúl Alfonsín, seu antecessor, por praticar uma política externa denominada por ele de  "confrontacionismo idealista". (ESCUDÉ, 1992, p. 42).  No entanto, a política de baixo perfil com a potência hegemônica defendida por Carlos Menem levou o país a tomar uma série de medidas contrárias à postura historicamente adotada pela Argentina de neutralidade e autonomia.

Durante as gestões de Menem o Brasil ocupou um lugar secundário na política externa da Argentina que elegeu os Estados Unidos como seu principal aliado. A aliança estratégica ensaiada durante o governo Alfonsín se restringiu exclusivamente a temas econômicos e comerciais no governo Menem. Isso porque o "paradigma da aquiescencia pragmática" via o Brasil de forma instrumental "como uma contraparte funcional en términos econômicos y disfuncional en términos políticos". (Russel, 2002, p.422).

As aspirações do governo argentino de transformar-se em interlocutor regional frente aos Estados Unidos provocaram um afastamento entre o Brasil e a Argentina causando muitas vezes alguns constrangimentos. A falta de apoio político-diplomático à candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e a decisão de tornar-se um aliado extra-OTAN dos Estados Unidos foram exemplos de conflito entre os dois países. (CORTES, p. 123, 2006). Havia por parte do governo Menem a convicção de que a aliança especial com os Estados Unidos também teria como propósito impor limites às pretensões brasileiras de atuar como liderança na região. A relação especial com os Estados Unidos serviria, portanto, como contrapeso para tais pretensões, revelando assim, que ainda permanecia nesse governo a ideia do Brasil como um país rival e que deve ser contigo.

A tentativa de colocar o país nas fileiras dos países do primeiro mundo através de uma aliança estratégica com o establishment econômico e a adoção da doutrina liberal como crença (NOVARO, 2004, p.200) foi, portanto, a versão menemista do pragmatismo justicialista. Conclui-se que o uso do pragmatismo por Menem teve como propósito esconder o conteúdo ideológico de suas propostas, tal como observa Russel (2003, p. 53).

Las referencias al pragmatismo, además, pretendian oscurecer la naturaleza ideológica de toda escogencia de un rumbo de acción político. Una opción ideológica implica un conjunto integrado de representaciones, valores y pensamientos que movilizan un determinado comportamiento. Y en esa dirección, la política exterior argentina, de los noventa fue tan ideológica como cualquier outra.

Nesse sentido, concorda-se com Simonoff (2008 p. 71) que afirma ser a postura do governo Menem mais ideológica que pragmática quando este ao propor uma nova inserção internacional para mudar a imagem do país perante a comunidade internacional comprometeu a equação autonomia/inserção e afetou também outras áreas vitais como a integração regional.

Por outro lado, esse pragmatismo se associou a um "voluntarismo excessivo", carregado de expectativas de mudança (uma ideia recorrente em todos os governos argentinos). Porém, nesse caso a tendência ao voluntarismo foi maior do que os demais governantes, pois havia um sentido de urgência em decorrência da crise hiperinflacionária e da convicção de que esta seria a última oportunidade de se promover políticas de governo inovadoras como as suas. (NOVARO, 2004, p. 212). Isto significa que houver uma grande vontade de diferenciar-se e romper com o que já existia, inclusive deixando para trás certos legados do peronismo, com o argumento de que a mudança permanente fazia parte da essência peronista.

Eduardo Alberto Duhalde (2002-2003)

Eduardo Duhalde assumiu a presidência provisória do país (até 2003), após a renúncia de De la Rúa em dezembro de 2001, com o intuito de diferenciar-se mais do governo de Carlos Menem e suas políticas de alinhamento com os Estados Unidos do que de seu opositor de partido que o havia precedido. Além de acabar com o sistema de conversibilidade através da desvalorização do peso em janeiro de 2002 e ter escolhido o economista Roberto Lavagna para o Ministério da Economia, Duhalde se propôs a reconstruir a imagem internacional do país através do estreitamento das relações com os países europeus, especialmente a Espanha. Para contrapor a expressão "relações carnais" atribuída à política externa de Menem, o novo chanceler Carlos Ruckauf utilizou o termo "relações poligâmicas" para indicar uma orientação externa mais universal e que abrangeria os diversos continentes3.

A política externa de Duhalde, no entanto, foi fortemente marcada pelas circunstancias internacionais e pela conjuntura nacional. Como afirma Miranda:

Las acciones de esta política estuvieron inevitablemente vinculadas a las circunstancias que el contexto internacional le imponía a la Argentina e a las restricciones que este país tenía como resultado de la crisis. (2005, p. 99).

A crise econômica do país e a necessidade de superação tiveram diretamente relacionada com os acordos com o FMI. Mais do que a relação biliteral com os Estados Unidos. Este país estava mais preocupado com outras questões como o terrorismo internacional, o conflito no Oriente Médio e a questão nuclear entre a Índia e o Paquistão que não havia espaço para uma intermediação sua junto ao organismo internacional em favor da Argentina. Sob tais circunstâncias foi mais fácil para Duhalde adotar o pragmatismo, uma das características fundamentais da tradição justicialista (MIRANDA, 2003, P. 70). Essa postura foi comprovada pelo menos até a assinatura do acordo de transição com o FMI em janeiro de 2003. (MIRANDA, 2003, p. 72).

O exemplo mais evidente do pragmatismo de Duhalde foi o apoio em 2002 à resolução que condenava Cuba por violações dos direitos humanos em resposta às pressões dos Estados Unidos. No entanto, pouco depois do acordo de 2003 com o FMI e com a economia mostrando alguns sinais de recuperação, Duhalde decidiu abandonar a postura de condenação a Cuba nas Nações Unidas. Essa posição está mais de acordo com o princípio da tradição justicialista de conservar a autonomia e de optar pela não interferência nos assuntos internos de outros países.

A opção por uma aliança estratégica com o Brasil reforça essa última posição à medida que esse país sempre manteve a tradição de abstenção em relação à interferência em assuntos internos de outros países. De acordo com Miranda, "una supuesta coordinación con el presidente Lula da Silva, en nombre de la "alianza estratégica" entre la Argentina y Brasil, hizo que Buenos Aires modificara su votación" (2003, p. 73).

Observa-se que o governo de Duhalde, por mais breve que tenha sido, foi capaz de manter uma posição (pelo menos em termos ideacionais) bastante diferente de seu correligionário, Carlos Menem, em um dos temas mais caros para a doutrina peronista que é a autonomia frente ao poder hegemônico. Para isso, de acordo com sua percepção, Duhalde considerava ser necessário fazer alianças que dessem suporte à nova estratégia de abandono do alinhamento com os Estados Unidos. E uma dessas alianças, naturalmente, teria que ser com seu principal sócio na América do Sul. A aproximação com o Brasil trouxe diferenças substanciais, pois significava fazer uma associação estratégica para enfrentar os Estados Unidos, e em conseqüência o fortalecimento do Mercosul deveria ser a estratégia de inserção internacional.

Outra situação relacionada com a autonomia que mostra um distanciamento de seu governo com o de Menem foi a posição a respeito da invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003. Duhalde se posicionou contra a ação militar de Bush a despeito de ser um aliado extra-OTAN dos Estados Unidos. Embora para alguns autores este enfoque tenha sido mais reativo do que racional (MIRANDA, 2003, p. 74), os movimentos realizados por Duhalde não significaram somente uma intenção de diferenciar-se  do passado, mas ficam evidentes as diferentes visões de mundo que guiaram os governos de Menem e Duhalde; o primeiro buscava no alinhamento com os Estados Unidos a oportunidade de recolocar a Argentina no cenário mundial, mesmo como um país coadjuvante; o segundo, buscava nas posições de maior autonomia a oportunidade de recuperar alguns dos princípios históricos do peronismo como a criação de um poder regional na América do Sul, elegendo o Mercosul como principal estratégia.

Entretanto, a crise social e institucional que havia se estendido por todo o país desde o ano de 2001 tirou a credibilidade necessária para levar adiante ambiciosos projetos como esses. Duhalde se viu obrigado a antecipar as eleições presidenciais de abril de 2003, deixando a seu sucessor a tarefa de continuar a aprofundar as mudanças realizadas na política externa argentina durante o seu governo.

Néstor Carlos Kirchner (2003-2007)

A eleição de Néstor Kirchner em 2003 trouxe algumas mudanças significativas tanto na política externa como na economia. Tais mudanças resultam da percepção da sociedade e do próprio governo sobre o fracasso da política externa do governo Menem baseada na relação especial com os Estados Unidos e com os organismos financeiros internacionais (FMI e Banco Mundial). (VADELL, 2006, p. 202). As características pessoais do presidente Kirchner, identificado com a esquerda peronista, também deram um toque de mudança nesse governo demonstrando que a visão de mundo do novo governante e de seus assessores passaria a ter influencia nas decisões tanto em matéria de política econômica como de política externa.

A política externa de Kirchner se moveu entre o pragmatismo e a aproximação com Washington. O pragmatismo nas negociações com os FMI tinha como pano de fundo a ideia de recuperar a imagem do país perante os organismos internacionais com o intuito de afastá-lo do isolamento internacional. Para  esse governo, a aproximação com os Estados Unidos permitiria à Argentina retomar a credibilidade que o país havia perdido durante a crise interna resultante da política econômica menemista. Também havia a percepção de que era de interesse dos Estados Unidos que a Argentina tivesse uma saída honrosa para que a crise do país não se estendesse a toda região. Como aponta Busso, uma  "mutua lógica pragmática, más que una visión principista o ideológica, de uno y otro lado, marcó el primer diálogo entre Kirchner y Bush ". (2006, p. 58).

Por outro lado, a aproximação de Néstor Kirchner com Cuba demonstrou que o pragmatismo utilizado nas negociações com o FMI não se estendeu às suas relações com os países da região. A identificação ideológica ficou evidente quando Fidel Castro foi à Argentina para participar da posse de Kirchner, em 2003, e mais tarde seu ministro das Relações Internacionais, Rafael Bielsa, visitou Havana. Essa atitude provocou um mal estar com os Estados Unidos, especialmente porque não houve por parte da Argentina nenhum questionamento sobre os direitos humanos durante a visita de Bielsa à ilha. A opção das autoridades argentina de não se reunir com dissidentes cubanos retoma a tradição do principio de não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, defendido pela geração "setentista" do peronismo e abandonada durante a administração Menem. Como nos recorda Vadell, os impulsos heterodoxos do novo governo podem ser creditados também à formação política de Kirchner e sua geração que militou na década de 1970 nas fileiras da esquerda peronista:

É um filho da geração dos anos 1970, que tem uma visão marcada por um momento histórico de mudança". Segundo Corigliano (2004), há influência de um passado de peronismo "setentista", de identificação ideológico-simbólica com regimes reformistas de caráter ideológico anti-imperialista. Essa visão "procura resgatar em forma simbólica ideias e gestos reformistas próprios da esquerda peronista na que militaram, em sua juventude, o presidente Kirchner e seu (primeiro) Chanceler Rafael Bielsa. (VADELL, 2006, p.203).

A abstenção da Argentina na condenação de Cuba na Comissão de Direitos Humanos, em 2003, iniciado pelo governo Duhalde, a aproximação com Evo Morales, líder dos cocaleiros na Bolívia e o fortalecimento das relações bilaterais com a Venezuela são sinais de que a posição política mais à esquerda do presidente Kirchner e seu principal assessor em política externa se refletiu na conduta externa do país.

No plano interno, o governo de Kirchner renovou a política de direitos humanos, suprimiu decretos de proteção aos militares, destacando-se de seus antecessores. Aprovou o pagamento de indenização a exilados políticos e defendeu a revogação das "leis do perdão" (Obediência Devida e Ponto Final)4, além de promover uma reforma do poder judiciário - renovação de parte da Corte Suprema de Justiça (FIGUEIREDO, 2005, p.11).

Para o governo Kirchner as relações com o Brasil foram priorizadas (a exemplo do governo Duhalde) sendo utilizadas como instrumento de poder nas negociações comerciais internacionais (OMC, G-20) perante os Estados Unidos e a União Européia. Entretanto, surgiram algumas divergências nos âmbitos regional e internacional que causou certo mal estar entre os dois governos. A falta de apoio por parte da Argentina  à proposta brasileira da Comunidad Sul-americana de Nações (CASA)5, lançada em 2004, e as disputas em torno da possível reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas  (VADELL, 2006, p. 211) são alguns exemplos desse mal estar.

Houve também divergências entre os dois países no que diz respeito à abrangência do processo de integração. A importância atribuída ao MERCOSUL por parte do governo Kirchner ia de encontro ao projeto brasileiro de estender a integração a toda América do Sul. O presidente argentino propunha um aprofundamento do MERCOSUL com vistas a reduzir as assimetrias entre seus estados membros em questões como investimento, balança comercial e coordenação de políticas industriais. Entretanto, de acordo com Miranda, esta importância não se refletia na diplomacia brasileira que:

[...] había asignado al bloque otra función: la de ser punto de apoyo fundamental para uno de sus objetivos estratégicos que era el de afianzar su liderazgo en La Comunidad Sudamericana de Naciones (CSN). (2005, p. 102).

A percepção do governo Kirchner sobre as intenções de liderança brasileira na América do Sul eram tão fortes que se refletiram na ausência do presidente na reunião que criou o organismo, em 2004, em Cuzco. (MIRANDA, 2005, p. 102). Segundo ele, o MERCOSUL significava para o Brasil uma espécie de  trampolim que o impulsionaria ao papel de liderança regional. E essa nova estratégia brasileira afetava a política externa da Argentina que não via alternativa melhor do que sua integração internacional através do MERCOSUL.

A crise entre a Argentina e o FMI também criou alguns constrangimentos nas relações com o governo brasileiro: o presidente argentino reclamou, à época, falta de apoio do Presidente Lula à Argentina durante o processo de negociação. Em 2004, Argentina adotou medidas de proteção à indústria local em detrimento das relações com o Brasil, e restringiu a importação da chamada linha branca  produtos da chamada linha branca (fogões, geladeiras, máquinas de lavar louça, etc) com a justificativa de proteção à indústria local. (FIGUEIREDO, 2005, p.14)

Embora a relação entre os dois países tenha apresentado algumas situações embaraçosas - marcadas, sobretudo, pelas características pessoais de ambos os líderes - a opção estratégica da aliança com o Brasil e o MERCOSUL revelam o corte autonomista do governo Kirchner que o faz diferenciar-se do modelo neoconservador da década de 1990. (SIMONOFF, 2008, p. 10).

A nova correlação de forças que se configurou na região, a partir de 2006, com a ascensão ao poder de governos de esquerda e com forte apoio popular (Venezuela, Bolívia, Peru, Equador, Uruguai) teve influencia sobre a política externa de Kirchner. Enquanto as relações com o Brasil estiveram um pouco mornas e por vezes conflituosas, com países como a Venezuela elas se estreitaram. Essa ambigüidade fez com que analistas como Carlos Pérez LLana, em entrevista ao La Nación, tenham afirmado que a política externa de Kirchner não existia e que havia um grande desconhecimento por parte desse governo sobre a agenda internacional, suas tendências e de como a Argentina poderia beneficiar-se:

Este gobierno no tiene política exterior porque no ha definido una lectura del mundo. Tampoco sabe quiénes sons sus socios, quiénes sons sus aliados, a quiénes nos queremos parecer, si a modelo populista o al socialdemócrata. (MARÍA RAMOS, 2006).

Considera-se, entretanto, que tal ambigüidade seja resultado da influência que o sistema de crenças dos dirigentes exerce sobre a tomada de decisão. Neste caso, Néstor Kirchner tentou atuar de acordo com seus princípios ideológicos identificados com a geração "setentista" do peronismo, porém, em um mundo diferente do da década de 1970, mais interdependente e complexo. Com freqüência os tomadores de decisão estabelecem uma agenda que o distancia de sua base ideológica para alcançar determinados objetivos. Exemplo no caso de Duhalde e Kirchner seria a abertura econômica aos mercados mundiais e a não confrontação com as grandes potências. Porém, no plano político e estratégico os decisores procuram preservar as relações com países cujos princípios ideológicos são similares aos seus. Tal posição pode ser caracterizada como uma busca pela autonomia com certa dose de pragmatismo, aspecto preconizado pelos ideais justicialistas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou demonstrar como as ideias fazem parte do conjunto de fatores que exercem influencia sobre a tomada de decisão dos governantes em matéria de política externa revelando práticas e condutas totalmente diferenciadas de governos oriundos de uma mesma tradição política. O caso específico se refere à política externa dos governos justicialistas Menem, Duhalde e Kirchner em relação ao Brasil.

As estratégias utilizadas por ambos os governos fazem referência à tradição peronista, porém cada um as utilizou para respaldar suas próprias crenças. Tanto o pragmatismo como a autonomia foram defendidas em um dado momento de seus governos, seja para defender a aproximação com os Estados Unidos como seu contrário. O que estava em jogo era, de fato, a percepção que cada decisor tinha a respeito do papel da Argentina no mundo e sobre si mesma. Em outras palavras, as ações em nome de uma tradição (justicialista) foram influenciadas mais pela visão de mundo de cada governante ou do grupo de decisores do que pelo conjunto programático da doutrina que ambos faziam parte.

Com isso pode-se entender porque no governo Menem, por exemplo, a relação com os Estados Unidos e com o Brasil foi tão diferente dos demais governos justicialistas. Embora Menem tenha optado pela integração regional, seu objetivo tinha um caminho distinto dos demais. A relação especial com os Estados Unidos alterou a relação com o Brasil e com o MERCOSUL que passaram a ter um caráter estritamente econômico e comercial. Com isso, a integração regional idealizada por Alfonsín e Sarney de construir um espaço econômico e político que ampliasse a competitividade dos países da região na esfera internacional foi deixada de lado.

A matriz ideológica de Menem foi fortemente influenciada pelas ideias liberais do início do século XX que se fortaleceram com o êxito do modelo agroexportador argentino. A política econômica proposta por Menem e a relação especial com a potência hegemônica guarda relação com essa experiência, embora deva ser observada a distância dos contextos históricos.

Outro aspecto que diferenciou Menem dos outros governos justicialistas foi a crença na Argentina como um país menos importante dentro do sistema internacional, portanto sem credenciais para defender o interesse nacional de um ponto de vista mais tradicional das relações internacionais. A ideia de um país sem atributos para atuar no tabuleiro internacional não coincide com os princípios de autonomia heterodoxa defendidos pela doutrina justicialista.

Por sua vez, o governo de Kirchner foi influenciado pelas ideias da geração dos anos 1970 cujo pensamento da esquerda peronista foi dominante. Embora dotado de uma dose de pragmatismo, esse governo fez questão de se aproximar de países com tradicional conflito com os Estados Unidos tais como Cuba e Venezuela e estabelecer aliança estratégica com Brasil. O mesmo ocorreu com o governo Duhalde que elegeu o Brasil como sócio estratégico para enfrentar os Estados Unidos. A autonomia foi, portanto, uma demanda tanto do governo Duhalde como do de Kirchner (diferentemente de Menem), demonstrando que eles foram fortemente influenciados pelos ideais da autonomia heterodoxa de Juan Carlos Puig, ainda que com certa dificuldade de colocá-los em práticas tanto por constrangimentos internos como externos.

 

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* 3º ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS - GOVERNANÇA GLOBAL E NOVOS ATORES
1. A primeira iniciativa foi de Perón, em 1951, denominada el "nuevo ABC",  uma reedição do Pacto ABC, encabeçado por Barão do Rio Branco, no início do século XX.  Para Perón essa iniciativa representaria a unidade latino-americana, pois reuniria os países economicamente mais importantes da região, quebrando a regra do isolamento para com o continente. (CISNEROS A.; PIÑEIRO IÑÍGUEZ, C. 2002)
2. Toma-se emprestado o conceito "world views"  de  Goldstein e Keohane (1993) descrito como ideias/crenças ligadas profundamente à cultura que passam a se refletir nos modos de pensamento, criando, assim, as identidades.
3. O chanceler Ruckauf definiu o Mercosul, a Europa, a Ásia e a África como os objetivos da política externa do governo Duhalde, Porém, a relação com o Mercosul se caracterizou como prioritária. (MIRANDA, 2003, p. 69)
4. As duas leis que foram promulgadas durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-89). A lei do Ponto Final, de 1986, estabelecia uma data limite para a apresentação de novos casos. A lei da Obediência Devida, foi promulgada um ano depois, em 1987.   
5. A Comunidade Sul-americana de Nações (CASA) foi estabelecida em Cusco, no Peru, no dia 8 de dezembro de 2004, por ocasião da III Reunião de Presidentes da América do Sul. O Brasil propunha a criação de um organismo que unisse o MERCOSUL e a Comunidade Andina. A CASA foi substituída em maio de 2008 pela União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), agora com total apoio da Argentina.