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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

As conseqüências da ascensão chinesa para a economia-mundo capitalista: o papel do fundo soberano chinês como instrumento da estratégia de desenvolvimento*

 

 

Helton Ricardo Ouriques; Pedro Antonio Vieira; Patrícia Fonseca Ferreira Arienti

Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC E Membros do GPEPSM – Grupo de Pesquisas em Economia Política dos Sistemas- Mundo (www.gpepsm.ufsc.br). E-mails: helton@cse.ufsc.br; pavieira@cse.ufsc.br; pffarienti@gmail.com

 

 


RESUMO

Vários estudiosos estão apontando a China como uma potência em ascensão, destacando a possibilidade de esse país ser o epicentro de um "Século XXI asiático". Evidências desse cenário passam pelo notável crescimento econômico chinês, pela importância crescente de sua produção manufatureira em escala global e pelo recente incremento de investimentos externos em outras regiões do mundo. Os crescentes superávits comerciais chineses estão sendo direcionados para o aumento de suas reservas cambiais e, mais recentemente, para a formação de um Fundo Soberano de Riqueza. O China Investment Corporation (CIC), fundo soberano chinês, vem despontando como um instrumento da transformação da China em ator fundamental no sistema global, especialmente devido ao tamanho dos recursos envolvidos e à sua atuação estratégica, dado que esse país vem utilizando parte de suas reservas estrangeiras, através do CIC, para investir em setores de energia, matérias-primas, agricultura e alta tecnologia no exterior. O objetivo do artigo é mostrar os indícios de que o CIC faz parte de estratégia de desenvolvimento chinês, que inclui a ocupação de espaços privilegiados na economia mundo-capitalista.

Palavras-chave: China, Fundos Soberanos de Riqueza, Desenvolvimento


 

 

1. Introdução

Como um primeiro resultado do projeto de pesquisa "A implicações da ascensão da China para o futuro da economia-mundo capitalista" o presente texto procura relacionar o Fundo Soberano Chinês às estratégias mais gerais que envolvem a inserção da China no sistema mundial.  Para tanto, o texto está organizado em duas seções. Na primeira, fazemos uma sumária apresentação do processo de desenvolvimento econômico chinês das ultimas três décadas e mostramos como este desenvolvimento obrigou a China a controlar empresas estrangeiras como forma de garantir o suprimento de matérias primas e outros suprimentos exigidos pelo seu fabuloso crescimento. Na segunda, argumentamos que as reservas internacionais geradas pelo processo de desenvolvimento e as especificidades do sistema monetário mundial levaram à criação dos Fundos Soberanos de Riqueza (FSR) os quais devem ser vistos com um dos elementos da estratégia global do estado chinês.

 

2. O processo de desenvolvimento chinês: aspectos gerais e situação atual

Um dos argumentos apresentados por Giovanni Arrighi na obra Adam Smith em Pequim(2009) diz respeito ao emparelhamento do poder mundial, por conta do ressurgimento da Ásia Oriental. E é impossível mencionar essa redução do abismo entre Ocidente e Oriente sem fazer referência a situação Chinesa. Chamada de "a fábrica do mundo", ou comparada a um "dragão que renasce", a República Popular da China vem, sem dúvidas, impressionando o mundo com a velocidade com a qual sua economia vem se expandindo desde o início dos anos 1980. Vários livros estão sendo publicados sobre isso, com títulos eloqüentes: "China S.A.", "A China Sacode o Mundo", "O Século da China", entre outros. Tais obras abordam, com matizes e profundidades variadas, o que também vem sendo denominado "renascimento chinês", ou "ascensão chinesa".

Não há exagero, no essencial, nas argumentações dessas obras. Afinal, a média de crescimento do PIB chinês no período compreendido entre 1979 e 1998 foide 9,6% ao ano, um desempenho superior ao obtido pelos denominados novos países industrializados do leste asiático, por exemplo. Esses dados são ainda mais impressionantes, caso consideremos a população de 1,3 bilhões de habitantes, o que significa que pelo menos 20% das pessoas do mundo moram na China. Observando a miríade de mercadorias fabricadas na China que circulam em todo o planeta e a crescente onda de investimentos chineses em outros continentes, em especial na África, é difícil imaginar que esse país era um dos países mais pobres do mundo em 1950. Lembremos que em 1949 tinha ocorrido a vitória dos comunistas na longa guerra civil contra as forças nacionalistas e esse país era composto por uma população de 563 milhões de pessoas, com mais de 80% vivendo no campo. Além disso, também impressiona saber que a China enfrentou, nestes mais de 50 anos posteriores à revolução, momentos de penúria, como a grande falta de alimentos ocorrida após o Grande Salto Adiante, em 1961, quando o PIB chegou a cair 27% em apenas um ano e milhões pereceram pela fome.

Não é nossa intenção explicar a extraordinária mudança ocorrida desde então, mas podemos considerar, como Fenby (2009), que "a economia socialista de mercado cresceu 10 vezes em três décadas, impulsionada pela mão de obra barata, pelo capital barato e pela alta produtividade, que cresceu 20 por cento ao ano desde1996" (p. xxxiii). Para esse mesmo autor, as grandes corporações e a poupança do Estado e das famílias tem garantido os investimentos e as indústrias de exportação, transformando um país relativamente pobre em um espaço central do sistema global. Evidências desse papel relevante da China no cenário internacional não devem ser vistas apenas na expansão da pauta de exportações de produtos feitos naquele país, sejam eles de empresas multinacionais ou chinesas. Isso porque a China vem se tornando um ator cada vez mais importante na geopolítica vista global.

Uma das variáveis fundamentais para a compreensão do notável processo de desenvolvimento chinês é o Estado, o que levou Castells (1999) a cunhar a expressão "nacionalismo desenvolvimentista chinês com características socialistas" (p. 348). O mesmo autor acrescenta que "a modernização e a abertura internacional da China é (e era) uma política estatal deliberada, elaborada e controlada até agora pelos líderes do Partido Comunista" (p. 349). Desde o início do processo de abertura econômica (1978), liderado por Deng Xiaoping, o Estado chinês tomou as rédeas do processo, controlando fluxos de força de trabalho e de investimentos. Nesse último aspecto, a criação de Zonas Econômicas Especiais evidenciou o controle do aparato estatal sobre os rumos do desenvolvimento, como mostrado pelo autor citado.

Além do protagonismo estatal, outro elemento do sucesso chinês são as redes de empresas chinesas (redes guanxi), que são as principais intermediárias entre o capital global, inclusive o capital chinês no exterior, e os mercados e pontos de produção/exportação da China (Castells, 2009). Também deve ser ressaltado que a questão da força de trabalho aparece como outra variável fundamental para a devida compreensão do fenômeno chinês, mas não somente pelos baixos salários. Como ressaltado por Arrighi (2009), tem sido decisiva a oferta abundante de mão-de-obra qualificada barata e, mais importante, o uso de tecnologia apropriada a esta situação.

...mesmo em áreas urbanas, a principal vantagem competitiva dos produtores chineses não é o salário baixo por si só, mas o uso de técnicas que empregam mão- de-obra instruída e barata, em vez de máquinas e administradores caros. Um bom exemplo disso é a fábrica de automóveis Wanfeng, perto de Xangai, onde não há um único robô à vista.Como em muitas outras fábricas chinesas, as linhas de montagem são ocupadas por fileiras de rapazes recém-saídos das muitas escolas técnicas da China os quais trabalham com pouco mais do que grandes furadeiras elétricas, chaves de boca e martelos de borracha (p. 371) (grifos nossos).

Essa combinação de abundância de força de trabalho qualificada com técnicas consideradas ultrapassadas revela a capacidade de inovar e de buscar um caminho próprio de desenvolvimento. Os resultados tem sido impressionantes e as transformações decorrentes podem ser qualificadas como as mais importantes e impactantes na evolução recente do sistema-mundo capitalista. Merece ser lembrado que esse processo teve seu alvorecer com a chegada de Deng Xiaoping1i ao poder no final dos anos 1970, quando foi implantada a estratégia de "um centro, dois pontos principais", isto é, o processo de reforma e abertura, que teve, entre outras, as seguintes implicações: "o governo chinês devolveu as propriedades agrícolas aos fazendeiros particulares, afastou o governo central da maioria das atividades econômicas, estabeleceu áreas especiais de produção para exportação e acolheu as corporações internacionais. O produto nacional quadruplicou em 20 anos e o padrão de vida triplicou" (Arrighi, 2009:450).

Como destacado por vários autores, desde então China vem impactando o mundo pelo seu consumo crescente de matérias-primas, como ferro, aço, cimento, carvão e petróleo. Apesar de seu limitado potencial agrário, por conta da escassez de terras agriculturáveis, esse país possui boas reservas minerais que são, no entanto, insuficientes para atender o notável crescimento econômico das últimas décadas (9,75% ao ano na década de 1980; 9,99% ao ano na década de 1990 e 10,11% ao ano entre 2000 e 2007). Por conta disso, é perfeitamente compreensível a estratégia chinesa recente de não só comprar essas matérias-primas no exterior, mas adquirir na totalidade ou em parte, empresas estrangeiras de setores considerados estratégicos, mesmo aquelas sediadas no centro da economia capitalista mundial. Na seqüência do texto, mostraremos como o Fundo Soberano de Riqueza aparece como um dos elementos dessa estratégia desenvolvimentista.

 

3. Os Fundos Soberanos de Riqueza (FSR) e o Fundo Soberano Chinês como estratégia de desenvolvimento

Para a compreensão dos fundos soberanos, é necessário preliminarmente apresentarmos, de forma bem resumida, uma caracterização do sistema monetário internacional nos dias atuais. Como destacado por Prates (2005), um sistema monetário internacional é formado, a cada período da história, pela sua moeda internacional, pelo regime cambial vigente, pelo grau de mobilidade de capitais e pela a dimensão hierárquica desse sistema.

Partindo da premissa da hierarquia no posicionamento das moedas nacionais, Cohen (2009a) ressalta que o poder monetário dos Estados Nacionais varia de acordo com sua posição no que ele designa como sendo a Pirâmide Monetária, estreita no topo, com uma ou poucas moedas dominando, e crescentemente larga na base. No topo da pirâmide está o dólar, por ser a única moeda que desempenha integralmente as funções de: a) moeda predominante nas transações monetárias (meio de troca); b) moeda predominante nas transações financeiras (unidade de denominação dos contratos); c) moeda que funciona como ativo de reserva, uma vez que é considerada o ativo mais líquido e seguro do sistema monetário internacional e tem a capacidade de servir como lastro da riqueza financeira mantida pelos bancos centrais, através dos títulos nela denominados (Carneiro, 2002).

As moedas dos demais países centrais também desempenham funções de meio de troca e unidade de conta. No que diz respeito à função reserva de valor, embora também sejam ativos de reserva nos portfólios dos investidores estrangeiros, atuam de forma secundária. No caso das moedas dos países emergentes, essas não são conversíveis2, uma vez que, de forma geral, países emergentes não são capazes de emitir dívida externa denominada na própria moeda (Prates, 2005).

Em resumo, o atual arranjo monetário internacional está, portanto, ancorado na enorme supremacia ou hegemonia do dólar. A existência de uma moeda reserva no âmbito internacional, e a hierarquia monetária associada a ela, reflete-se nos diferentes graus de autonomia dos países na execução de suas políticas econômicas domésticas. Os países centrais, embora não sejam emissores da moeda-chave, usufruem de um grau de autonomia na condução de suas políticas econômicas maior do que a dos países que estão na base da pirâmide monetária, em função da natureza conversível de suas moedas. Os países emergentes, por serem emissores de moedas não conversíveis possuem menor grau de autonomia na execução de suas políticas. De fato, embora num ambiente de ampla mobilidade de capitais, países emergentes enfrentem períodos tanto de abundância como de escassez de recursos externos, esses países não têm autonomia para adotar as políticas anticíclicas necessárias para reduzir os impactos desses fluxos de capitais sobre o desempenho econômico doméstico.

Dessa forma, considerando a hierarquia monetária num sistema monetário internacional caracterizado pela lógica especulativa e pelas finanças globalizadas e desregulamentadas, um país que possui moeda não conversível ou que esteja na base da pirâmide monetária, precisa aceitar acumular a moeda reserva se quiser participar da economia internacional.

No que diz respeito aos EUA, é exatamente esse excedente de reservas, por parte dos outros países, que reforça o papel do dólar como moeda-reserva internacional. Assim, a ampla autonomia dos EUA para implantar políticas macroeconômicas de forma a evitar ajustes internos mais dolorosos repousa na aceitação do dólar por agentes externos, incluindo não apenas os atores do mercado privado que utilizam esta moeda para seus investimentos privados, como os bancos centrais que utilizam dólares como reservas. Uma vez que entra neste circuito, o país absorve dólares tanto pela esfera pública, através da absorção do excedente de reservas internacionais dos outros países (que precisam manter as reservas para proteção à crise), como pela esfera privada mediante a conta movimento de capitais (Cohen, 2006).

Carneiro (2002) ressalta que, embora a dimensão hierárquica seja uma característica do sistema monetário internacional desde o padrão-ouro, no caso do atual arranjo monetário e financeiro, baseado no padrão dólar flexível, no câmbio flexível e na ampla mobilidade de capital, a hierarquia torna-se mais perversa que nos arranjos anteriores. De acordo com Serrano (2002), o padrão dólar-flexível difere do padrão dólar-ouro pelo fato de não haver nenhum vínculo entre o dólar e o ouro. Ou seja, não existe mais a necessidade de manter alguma paridade entre o dólar e o ouro. Essa especificidade oferece aos Estados Unidos ampla autonomia para criar liquidez internacional e ampliar o seu endividamento, fornecendo ao país emissor da moeda-chave internacional, um grau ainda maior de autonomia na condução de sua política econômica doméstica. Dessa forma, a ausência da conversibilidade dólar-ouro, permite aos Estados Unidos eliminar qualquer restrição externa, uma vez que eles podem conviver com um déficit permanente em transações correntes sem se preocupar com o seu financiamento, pois o seu passivo "externo" é composto de obrigações denominadas na própria moeda (Serrano, 2002).

Conclui-se, assim, que o substancial crescimento do valor das reservas nos bancos centrais dos países que possuem moedas não conversíveis pode ser explicado pelos desequilíbrios intrínsecos de um sistema monetário internacional baseado no dólar-flexível como moeda reserva. Este sistema, por um lado, obriga os bancos centrais desses países a acumularem um montante elevado de reservas como defesa contra a volatilidade inerente ao próprio sistema e, por outro lado, permite que o volume de liquidez internacional seja determinado pela condução da política econômica doméstica dos Estados Unidos.

O ciclo recente de abundância de liquidez internacional, interrompido pela crise subprime (2008), tem permitido a vários países em desenvolvimento acumular superávits na conta corrente e no Balanço de Pagamento, de forma a acumular excessivo volume de reservas internacionais. O acúmulo excessivo de reservas internacionais, no entanto, tem provocado um desalinhamento entre as moedas, gerando uma depreciação do dólar frente às moedas dos países que adotaram o regime de câmbio flutuante (como, por exemplo, os países da área do euro, da América Latina, Austrália, Nova Zelândia, Islândia, Turquia etc.). Ressalta-se também que, a fim de reduzir a pressão inflacionária gerada pelo excesso de reservas internacionais, alguns países em desenvolvimento precisam emitir títulos nos mercados locais para tirar dinheiro de circulação, pagando juros altos.

Do ponto de vista dos países emergentes, embora o acúmulo excessivo de reservas gere impactos negativos para o país, no que diz respeito ao aumento do déficit em transações correntes, num sistema financeiro marcado por crescente volatilidade e mobilidade dos fluxos de capitais, a estratégia de acumular reservas tornou-se uma necessidade para aqueles países que não possuem as moedas hierarquicamente mais relevantes e, portanto, estão mais sujeitos aos ataques especulativos. É que o acúmulo de reservas oferece proteção contra alterações na liquidez internacional, permitindo-os usufruir de maior autonomia na execução de suas políticas econômicas domésticas3.

Nesse contexto de excesso de reservas, os bancos centrais desses países periféricos começam a se preocupar em como administrar suas reservas em moedas estrangeiras. De um modo geral, parte substancial destas reservas de câmbio é aplicada em produtos financeiros sem riscos e rapidamente mobilizáveis, como os títulos de curto prazo do Tesouro dos EUA, mas com baixa rentabilidade. Assim aplicadas, essas reservas têm um custo de carregamento, basicamente dado pela diferença entre o seu custo de oportunidade e a rentabilidade obtida (Lacerda, 2007). Além disso, essas aplicações estão perdendo valor, primeiramente, devido ao declínio do dólar e, também, devido ao próprio aumento das reservas. De fato, à medida que os países emergentes passaram a acumular reservas em excesso4, o aumento da demanda por títulos do Tesouro americano tem reduzido os juros de longo prazo, tornando as reservas pouco rentáveis.

A situação paradoxal de o acúmulo excessivo de reservas, por um lado, gerar impactos negativos para o país mas, ao mesmo tempo, ser um mal necessário num sistema monetário hierarquizado e marcado por livre mobilidade de capital, levou os bancos centrais desses países a buscar alternativas de gestão dessas reservas, de tal forma que parte dessas reservas está sendo canalizada para a aquisição de diferentes tipos de ativo em carteiras administradas por fundos soberanos. Dessa forma, países que são grandes detentores de reservas começam a aplicar parte dos recursos na compra de empresas estrangeiras e ativos reais, ou investir em bolsas ou em bônus de empresas, em busca de um retorno maior do que o obtido com os títulos soberanos dos EUA. Países de economia emergente, como China, Coréia do Sul criaram, recentemente, fundos com recursos de suas reservas cambiais que seriam destinados à compra de participações acionária sem bancos e empresas de nações desenvolvidas.

Ressalte-se que não há consenso na literatura sobre o significado dos fundos soberanos de riqueza (FSR). Cagnin et al (2008) destacam que não existe uma definição consensual para os sovereign wealth funds, sendo esses, muitas vezes, confundidos com os fundos de estabilização e os saving funds. Segundo os autores,no entanto, a distinção conceitual deve ser feita, uma vez que existem diferenças nos objetivos e na forma de captação de recursos.

Os Saving Funds são fundos formados a partir da tributação das atividades relacionadas a recursos naturais com objetivo de conservação da riqueza para gerações futuras. Muitos países que tem sua principal exportação baseada em riqueza não-renovável (petróleo, cobre ou gás natural) criaram um fundo cambial com o objetivo de garantir o direito de apropriação dessa riqueza, agora sob a forma de ativos financeiros, pelas gerações futuras. São exemplos dos saving funds o Future Generations Fund, criado em 1976, pelo governo do Kuwait, a partir do seu fundo de estabilização, o Alaska Permanent Fund, também de 1976. O fundo norueguês, Government Petroleum Fund – Global (GPF-G), consiste num fundo de estabilização, mas que também possui o objetivo de conservação intergeracional de riqueza.

Os fundos de estabilização foram criados por países cujas economias são dependentes da exportação de produtos sujeitos as oscilações de preço, como, por exemplo, os países exportadores de petróleo, como Trinidad e Tobago, Emirados Árabes, Kuwait, Irã, Noruega, Rússia e Venezuela. No mesmo sentido, o Chile adotou os fundos de estabilização devido a sua dependência em relação ao cobre. Durante os períodos de ampliação das exportações, crescem, também as transferências ao fundo, que são direcionadas ao sistema financeiro internacional, reduzindo, assim, a tendência de valorização da moeda doméstica. Nos períodos de redução das exportações, e a conseqüente redução da entrada de divisas, ampliam-se as transferências de recursos do fundo para o orçamento público, contrabalançando a queda da receita do governo, devido ao peso da commodity na economia, além de reduzir a tendência à desvalorização cambial5.

Os Sovereign Wealth Funds representam uma estratégia mais arrojada de administração das reservas, pois são dotados de uma gestão própria, freqüentemente próxima da gestão de fundos de investimentos privados, aplicando as reservas em aplicações mais rentáveis que os títulos de dívida pública dos países desenvolvidos, especialmente aqueles emitidos pelo Tesouro americano.

Como já dissemos anteriormente, não existe uma definição única sobre os Fundos Soberanos de Riqueza (FSR), mas adotaremos aqui a concepção de Caparica (2010), que os trata com um grande conjunto de ativos de propriedade governamental. Para esse mesmo autor "os recursos que alimentam estes fundos são, em geral, provenientes de reservas internacionais, de superávits fiscais ou de recursos oriundos de programas de privatização. No caso das reservas internacionais, quando são direcionadas para estes instrumentos, são geridas de forma separada das reservas que permanecem no Banco central" (p.12).

É importante ressaltar que, embora existam desde 1953, quando o Kuwait criou seu fundo soberano6, os FSR passaram a chamar mais atenção na primeira década do presente século, levando alguns analistas a se alarmarem com o fato de países periféricos e semi-periféricos virem a se tornar proprietários de ativos nos países centrais7, tendência que se tornou mais aguda a partir de 2008, quando, em especial por conta da crise financeira, alguns desses fundos estiveram envolvidos em transações de compras de ativos em instituições financeiras que estavam no centro da referida crise, como o Citigroup e o Morgan Stanley.

A pesquisa de Cagnin et alli (2008) mostrou que o crescimento dos ativos e a escala das operações de investimentos dos fundos soberanos de riqueza e de outras entidades estatais dos países em desenvolvimento acabou desencadeando um debate nos EUA e na Europa sobre os interesses desses fundos e desses países em corporações americanas e européias: "o debate nos países industrializados esteve relacionado com as motivações dos investimentos estatais de terceiros países. A falta de informações sobre a composição dos portfólios e as estratégias de investimento dos fundos de riqueza soberana suscitou temores se eram motivadas não apenas financeiras (busca de elevado retorno para os ativos acumulados), mas também geopolíticas" (p. 38-9). Em outras palavras, os países centrais trouxeram à baila preocupações com a "segurança nacional", tendo em vista a possibilidade aventada de os fundos soberanos dos países periféricos ou semi-periféricos controlarem "segmentos e conhecimentos considerados estratégicos, como na indústria de defesa, infra-estrutura pública e privada (portos, energia telecomunicações), empresas tecnológicas e acesso a fontes de suprimento de recursos naturais"(idem, ibidem).

Com base nos números mais recentes, disponibilizados pelo Sovereign Wealth Fund Institute (SWFI)8, em junho de 2001 os 50 principais FSR tinham um total de US$ 4,416 trilhões de dólares. Embora esse montante seja bastante inferior aos montantes financeiros existentes em outras fontes, como destacado por Cagnin et alli (2008), é digno de menção o potencial de crescimento dos FSR, com apontado por Cohen (2009b) e Sias (2008), que citam projeções do FMI a esse respeito9.

Esses dados sugerem uma indagação: estaria em curso um fortalecimento financeiro das periferias e semi-periferias em relação ao centro? Levantamos essa pergunta porque, de acordo com o FMI, "as reservas internacionais somavam U$ 5,3 trilhões em dezembro de 2007, sendo U$ 1,4 trilhão dos países desenvolvidos e U$ 3,9 trilhões dos países em desenvolvimento. Dentre os países em desenvolvimento, as maiores reservas internacionais estavam em poder da China, com U$ 1,5 trilhão, seguida pela Rússia, com U$ 445,3 bilhões; em terceiro lugar encontrava-se a Índia, com U$ 256,8 bilhões e o Brasil aparecia em quarto lugar, com U$ 180 bilhões" (Cagnin et alli, 2008:4). As reservas internacionais da China, em setembro de 2010, estavam em U$ 2,65 trilhões (Revista Exame, 13.10.2010). Não é à toa, portanto, que o FSR chinês CIC tenha aumentado de U$ 200 bilhões em 2007, quando foi criado, para U$ 334,7 bilhões em junho de 2011. É sobre o FSR da China que trataremos a seguir.

Em seu último livro, Giovanni Arrighi (2009), entre outras coisas, discutiu a dinâmica da ascensão da China, tendo como pano de fundo "a transferência do epicentro da economia política global da América do Norte para a Ásia Oriental" (p. 13). Esse mesmo autor, na parte quatro da obra citada, mostra alguns elementos da estratégia de "ascensão pacífica" chinesa, que também é destacada por Pereira Pinto (2005), Pautasso (2006), Michel (2008) e Khanna (2008), entre outros.

Concordando com a linha geral de argumentação que enxerga nos impressionantes indicadores do desenvolvimento econômico chinês a possibilidade de uma transformação mais profunda na economia-mundo capitalista e após apresentaremos algumas informações sobre o FSR da China, argumentaremos que o mesmo se insere na estratégia maior de "ascensão pacífica", explicitada desde a chegada de Deng Xiaoping ao poder (isto é, desde 1978).

Sem quaisquer dúvidas, a China merece especial destaque em qualquer análise de atuação econômica internacional devido ao tamanho de sua economia. Os FSR chineses não são diferentes, pois a China possui diferentes fundos que figuram entre os maiores do planeta. Independente da fonte e da definição que se possa dar ao que são fundos soberanos, dois deles, o National Social Security Fund (NSSF), e o China Investment Corporation (CIC) estão no topo de qualquer ranking referente ao tamanho e importância do fundo. O NSSF, criado em 2000, com a finalidade de reinvestir internamente derivativos governamentais, vem expandindo seus investimentos no exterior, especialmente na área de private equity.

Em março de 2007 o governo chinês anunciou que criaria um fundo soberano para administrar de maneira mais eficaz suas reservas cambiais, que na época se aproximavam de US$1,5 trilhões e provocavam desajustes econômicos. Nesse contexto, a criação de um fundo de investimento mais dinâmico, com um portfólio mais amplo, buscando investimentos de maiores risco e retornos, representava uma opção mais rentável à aplicação das reservas em títulos da dívida pública americana (Martin, 2008.). O China Investment Corporation (CIC) foi instituído em 27 de setembro de 2007, com um capital inicial de US$ 200 bilhões, o que já o colocava dentre os maiores FSR do planeta. Contudo, não foram apenas os valores iniciais que chamaram a atenção internacional para este agente. Durante a crise subprime, de 2008, o CIC ganhou destaque ao adquirir, já em dezembro de 2007, 9,9% da firma de financiamentos estadunidense Morgan Stanley pela quantia de US$ 5 bilhões, justamente em um momento no qual algumas instituições financeiras vinham passando por fortes problemas estruturais.

Informações, divulgadas pela imprensa especializada, nos levam a concluir que o CIC tem uma política de aquisição de ativos em países ocidentais, que parece configurar uma orientação estratégica por parte do Estado Chinês. Por exemplo, no final de 2009, o CIC possuía U$$ 651,7 milhões investidos na Vale do Rio Doce, US$ 3,5 bilhões na mineradora canadense Teck Resources e US$ 713,8 milhões na gestora de recursos Blackrock. Além disso, possuía ao todo US$ 9,63 bilhões em mais de 60 companhias nos Estados Unidos. O fundo CIC também adquiriu 15% do capital da empresa de energia americana AES (que no Brasil controla a distribuidora Eletropaulo e a geradora AES Tietê), por US$ 1,58 bilhões, em 2009 (Valor, 06.11.2009). Também em 2009, o fundo CIC comprou por US$ 300 milhões uma participação de 45% na empresa petrolífera russa Nobel Oil Group.

O que sustenta nossa hipótese de que não se tratam apenas de investimentos no exterior visando rentabilidade financeira? Em primeiro lugar, a origem estatal dos recursos obriga-nos a considerar sempre objetivos de poder frente a outros estados, neste caso, travestidos de uma transação econômico-financeira. Em segundo lugar, o fato de os FSR chineses estarem sendo aplicados em setores estratégicos. Estas duas dimensões foram bem captadas por Alcioly et alli (2008):

As teorias clássicas da internacionalização produtiva não são capazes de explicar plenamente este processo na China. Neste país, a internacionalização é fortemente comandada pelo Estado e só a partir das mudanças políticas e institucionais recentes pode ser mais bem compreendida. A partir de 2002, com a instituição da política "Go    Global" o Estado chinês passou a oferecer uma série de incentivos às empresas internacionalizadas, além de facilitar o processo administrativo para a realização dos investimentos. A observação das características gerais dos investimentos chineses no exterior também permite argumentar que vão além das de cunho puramente comercial, passando pela questão da sustentabilidade do balanço de pagamentos até mesmo objetivos de cunho geopolíticos (p. 2, grifos nossos).

Para que possamos dimensionar adequadamente as implicações geopolíticas dos FSR chineses, é preciso levar em conta que o Estado chinês não é um estado a mais no sistema interestatal, e sim um gigante, em termos populacionais, culturais e em capacidade de realização, como fica demonstrado nas transformações que esse Estado vem comandando desde os anos 1980, pelo menos. Por tudo isso, embora não seja expansionista e nem belicoso (Arrighi, 2009), a China certamente pretende se colocar no topo do sistema interestatal e, entre suas armas, podemos incluir os Fundos Soberanos de Riqueza. É nesta perspectiva que ganha sua verdadeira dimensão a seguinte afirmação do Premiê Wen Jiabao, em 20 de julho de 2009, proferida em um discurso sobre política e estratégia chinesas. Disse ele que pretendia "…speed up the implementation of the 'going out' strategy, the use of foreign exchange reserves and business. go to "combine up to foreign investment and merchandise exports" [grifos nossos] (Jiabao, W. apud Backer, 2010:100).

Como notou corretamente Backer, "Wen's speech explicity connected China's "Go Global" Strategy to its SWF, as well as other sovereign investment vehicles" (idem, ibidem). Na continuidade da pesquisa seguiremos esta pista e procuraremos não só mais evidências da inserção do FSR na estratégia global da China, como também avaliar os resultados desta inserção para a China, para os países envolvidos e para o futuro do sistema capitalista mundial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VALOR. AES recebe US$ 2 bilhões em aporte da China, 06.11.2009.

 

 

* Workshop: Os BRIC e a Ordem Internacional.
1. Para uma compreensão mínima do papel estratégico desse líder no processo de desenvolvimento chinês, ler A China de Deng Xiaoping, de Michael Marti (2007).
2. A conversibilidade de uma moeda nacional está ligada a sua capacidade de desempenhar, no âmbito internacional, as três funções da moeda: meio de pagamento, unidade de conta e ativo de reserva no sistema monetário internacional. Existem, contudo, diferentes graus de conversibilidade, relacionados à posição da moeda na hierarquia monetária.
3. Embora o acúmulo de reservas tenha custos, num sistema monetário internacional caracterizado pela existência de uma hierarquização das moedas e livre mobilidade de capitais, a opção por não acumular reservas é uma opção possível apenas para o país emissor da moeda dominante, os Estados Unidos, ou para aqueles países que possuem moeda conversível.
4. O nível atual das reservas ultrapassa largamente as normas internacionais que consideram que reservas equivalentes a um quarto das importações anuais sejam suficientes. As reservas da Coréia do Sul, por exemplo, são superiores a um ano das importações da China (Carta Maior, 2010).
5. Observa-se que, mesmo que a busca por maiores rendimentos não seja o objetivo principal dos saving funds ou dos fundos de estabilização, o baixo rendimento de ativos menos arriscados, incluindo os títulos do Tesouro dos Estados Unidos, tem conduzido esses fundos a agir de forma semelhante aos sovereign wealth funds, ou seja, na busca de uma maior diversificação das aplicações.
6. Para uma pequena cronologia sobre os fundos soberanos, ver Cagnin et alli (2008). Para um aprofundamento, ver Backer (2010).
7. Como relatado na reportagem do jornal Le Monde Diplomatique, de maio de 2008, intitulada A Polêmica Ascensão dos Fundos Soberanos.
8. Organização designada a estudar os Fundos Soberanos e seu impacto nos diferentes regimes internacionais. Para maiores informações vide <www.swfinstitute.org>
9. Como destacado por Cohen (2009b), "According to an early analysis by the International Monetary Fund, SWF holdings could soar to between $ 6 trillion and $ 10 trillion by 2013. Other projection have run even higher, to as much as $ 8 – 12 trillion by 2015. Numbers like these heve led some to identify SWFs as among the most important new power brokers in the world economy" (p. 714).